Festival de Teatro de Vitória: diversão e reflexão / 2008
Resumo: 4ª versão do festival nacional de teatro promoveu o encontro de vários estilos e épocas do teatro. O público teve acesso ao que é de melhor no teatro do Brasil que não passa pelo circuito de apresentações anuais no Espírito Santo.
Foram nove dias de intensa movimentação das artes cênicas em Vitória. O festival realizado entre os dias 13 e 21 deste mês, promoveu oficinas, debates e apresentações de várias vertentes do teatro brasileiro, nas ruas e nos palcos. Muitas das peças apresentadas são de grupos inéditos no estado e que provavelmente não chegariam sem que um festival promovesse esse encontro, como o grupo Cena Brasília que apresentou a peça “Dinossauros”: “Estamos muito felizes com a oportunidade de vir a Vitória, o público merece teatro”, afirma o diretor da peça Guilherme Reis. Pensando nisso, fomos conferir as principais peças visitantes que lotaram todos os teatros da capital.
A peça que abriu o festival foi a belíssima “Gota D’água”, da Primeira Página Produções, do Rio de Janeiro. O musical que é uma releitura da tragédia grega Medéia, de Eurípedes e encheu os olhos e os corações do público com alegria, bom humor e, ao mesmo tempo, dor por acompanhar o drama de Joana, uma mulher de aproximadamente 40 anos que se casou com Jazão, um rapaz dez anos mais jovem. Joana se vê trocada por uma mulher mais nova e rica e, com isso, sofre e busca vingança. A releitura foi escrita por Chico Buarque e Paulo Pontes. Ambientada no Rio de Janeiro, a peça lança mão do universo do samba no qual Jazão é um jovem sambista que quer vencer na vida pela música. O drama mostra os jogos de poder, as dificuldades da periferia, o desejo de justiça em todas as camadas da vida humana, sejam, sociais ou emocionais. Esses desejos são representados pelo coro de vizinhos e amigos do casal que permanecem quase que todo o tempo em cena. Com a entrada de Izabela Bicalho, interpretando Joana, a peça ganha toda a densidade de uma tragédia. A forma de andar, a expressão de dor em cada marca de seu rosto e corpo à beira da loucura por não conseguir fazer mais nada, já que, como toda tragédia grega, o ser humano está à mercê do destino e todo aquele que vai contra ele, paga pela sua ignorância. Joana representa um dos maiores desafios da mulher no qual o tempo, culturalmente, parece ser mais implacável para elas. Izabela é dona do tempo quando atua e, junto com o restante do elenco tem a força para levar o público para onde quiserem. A direção explorou todos os níveis possíveis do palco, do chão a quase o teto do teatro. A posição de pequenas escadas decretava os ambientes das cenas e diversas cores e formas foram exploradas.
O Espetáculo “Amargo Siciliano”, do Grupo Tapa, de São Paulo, se apresentou na terça-feira. Baseado em contos do dramaturgo Pirandello, três histórias foram condensadas em uma peça. Ela busca uma aproximação com o estilo realista, mas não é fiel ao extremo. Não seria justo rotulá-la como realista já que utiliza elementos contemporâneos, principalmente em nossa era pós-moderna em que os rótulos estão caindo. A preocupação com a palavra e a linguagem formal ditam o clima da peça, que, muitas vezes, torna-se linear. Os momentos de humor são certeiros e didáticos. Os próprios atores mudam as disposições do cenário, criando outros ambientes. Isso mostra um grande amadurecimento do teatro quando este assume sua precariedade e faz disso linguagem e arte. Além de Armargo Siciliano o Grupo Tapa, de São Paulo, também apresentou a peça “Camaradagem” no festival.
“Anatomia humana de Vico e Campanela”, da Cia. K, de Belo Horizonte, brinca com a linha limite que separa a grande inteligência da loucura. Homens enterrados em uma biblioteca cujos livros já devem ter sido lidos mais de uma vez. Imagine ler tanto que o cérebro pifa de tantas informações e questionamentos? O texto, inspirado no teatro do absurdo, não possue uma linearidade, mas é cheio de metáforas e pensamentos profundos do nosso mundo e das relações. Vico e Campanela parecem dois magistrados que estudaram até endoidar. Em contra ponto com eles está um estranho que caiu pela clarabóia da biblioteca e perde a memória e, uma pessoa sem memória perde a identidade, não sabe os conhecimentos que tem e torna-se um ser sem inteligência. Ele está do outro lado da linha dos “magistrados”. Assim, os companheiros fazem o que bem entendem de seu visitante.
Em “A mulher que escreveu a bíblia”, do Rio de Janeiro, a atriz Inez Viana utiliza todo o potencial de seu rosto perfeito para atuação no monólogo. O corpo da atriz tem prontidão para ir de um canto a outro do palco e os nossos olhos a seguem nesse jogo. Ela parece, acima de tudo, estar se divertindo muito em cena, numa brincadeira em que uma única mulher precisa segurar e compartilhar sua arte com mais de 700 pessoas. Por meio do humor a peça fala de uma das setecentas esposas do Rei Salomão, responsável por escrever a Bíblia. É uma oportunidade para rir, e porque não, repensar ídolos e histórias que de tão antigas e enraizadas não são mais questionadas. Uma forma de fazer com que cristãos e ateus não se sintam ofendidos.
No final das contas todos terminamos sozinhos e caminhamos sozinhos. Essa é uma das leituras que podem ser feitas da peça “No final das Contas”, do Rio de Janeiro, um monólogo interpretado por Letícia Braga. A montagem faz com que o público participe e se pergunte sobre o que tem de essencial em sua vida. “Quantas janelas têm na sua casa? Você tem animal doméstico? Tem geladeira...”, com essas perguntas o seu texto ganha volume e a atriz persegue essas respostas até encontrar algo que seja expressivo e, para isso, conta com uma memória afiada e ouvidos e olhos por todo o corpo. Ouve e vê tudo que acontece à sua volta. Letícia vive uma pessoa que se contenta com pouco, como um lugar pequeno para viver, poucas janelas que são pontos de contato com o restante do mundo, uma geladeira por que todos precisam comer e um animal doméstico para espantar um pouco a solidão e conclui “Eu aprendi que menos é sempre mais...”.
Quando duas pessoas que não têm mais nada a perder se encontram, uma pode curar a dor da outra e salvá-la da solidão. Duas pessoas que se acham os últimos seres da terra em importância também se tornam as únicas e, por isso, podem fazer tudo o que lhes é agradável. Podem se soltar e unidas elas ganham coragem. No mundo dos relacionamentos esta é a mais sincera e aberta união. Esse lindo encontro foi promovido na peça “Dinossauros”, do Grupo Cena Brasília. Com o excelente texto de Santiago Serrano, os atores Murilo Grossi e Carmem Moretzsohn com poucos elementos cênicos, mas muita sinceridade e humildade ao interpretar fizeram dessa uma das melhores apresentações do festival.
Produzida pela Cia Paulista de Artes, São Paulo, “As noivas de Nelson” arrancou muitos risos da platéia. Isso mesmo, muitos risos com as histórias de traição, paixão e morte de Nelson Rodrigues. Esses sentimentos e acontecimentos, que modificam por demais as nossas vidas, são exploradas sem culpa ou pudor por Nelson e a Cia a executa com a dignidade que o autor merece. As passagens de um conto para outro são recheadas por depoimentos do próprio Nelson Rodrigues como: “Jovens, envelheçam o mais rápido possível”.
Essas foram algumas das peças que circularam pelo estado nesses dias de festival, quem conseguiu assistir a pelo menos uma pode se considerar sortudo, pois viu o que de melhor o pais está produzindo em matéria de Teatro.
Charlaine Rodrigues, atriz, produtora de TV e pós graduanda em Linguagens audiovisuais e multimídia pela Ufes.